segunda-feira, 15 de outubro de 2007

O Gado do Sol... (Como exceção.. depois do Joyce vai um texto meu de 2005)

Deshil Holles Eamus. Deshil Holles Eamus. Deshil Holles Eamus.

Envia-nos, brilhante, luzente, Horhorn, fertilidade e frútero. Envia-nos, brilhante, luzente, Horhorn, fertilidade e frútero. Envia-nos, brilhante, luzente, Horhorn, fertilidade e frútero.

Upsa, meninim, upsa! Upsa, meninim, upsa! Upsa, meninim, upsa.

Universalmente o daquela pessoa acume é estimado muito pouco percuciente no tocante a quaisquer questões que estejam sendo sustentadas como as que com mais utilidade por mortais de sapiência dotados se pode aprender que se mantém ignorante daquilo que os mais em doutrina eruditos e certamente em razão daquilo que neles alto da mente ornamento de veneração meritório constantemente sustentam qunado por geral consenso afirmam que sendo iguais circunstâncias outras por nenhum exterior esplendor é mais eficazmente a prosperidade de uma nação afirmada do que pela mensuração de quão adiante possa ter progredido o tributo de sua solicitude para com aquela prolífera continuidade que dos males origem se ausente quando felizmente presente constitui certo sinal da incorrupta benevolência da onipolente natura. Pois quem haveria que algo de alguma monta apreendera que não esteja cônscio de que tal externo esplendor pode ser a superfície de uma lutulenta realidade inferorientada ou pelo contrário alguém existe de tão iniluminado que não perceba que assim como dom algum de natura pode rivalizar com a prodigalidade de progenitura de modo que cabe a cada um dos mais justos dos cidadãos tornar-se exortador e admonitor de seus semelhantes e tremer diante da possibilidade de que o que foi no passado pela nação excelentemente iniciado possa no futuro ser não com similar excelência acabado se um inverecundo hábito houver gradualmente degradado os honrosos pelos ancestrais transmitidos costumes a tal grau de vileza que seria audaz em excesso aquele que sustentara a intrepidez de surgir afirmando não mais odiosa ofensa poder para qualquer haver do que a de obliviante negligenciar a observação do evangelho de simultâneas ordem e promessa que sobre todos os mortais com profecia de abundância ou de coarctação ameaça da exalçada reiteradamente função procriativa pela eternidade irrevogavelmente injungida?

Não há portanto por que admirarmos se, como os melhores historiadores relatam, entre os celtas, que nada que não fosse por sua natureza admirável admiravam, à arte da medicina grande honra se tenha dado. Para não falar de albergues, lazaretos, suadoiros, da peste as covas, os maiores doutores seus, O'Shiels, O'Hickeys, O'Lees, que sédulos os múltiplos métodos expuseram por que os doentes e os recidivos a sanidade reencontrassem tivesse a doença sido coréia ou a reira de Boyconnell. Decerto em toda pública obra que em si algo de gravidade contém a preparação há de ser com a importância comensurável e subseqüentemente um plano foi por eles adotado (se por prévia consideração ou como maturação da experiência é difícil de ser dito sendo que as discrepantes opiniões dos ulteriores questionados ainda não até agora a um juízo confluíram que o manifestasse) porquanto a maternidade estava tão remotamente de qualquer possível acidência afastada que quaisquer cuidados que a paciente naquela sobressevera das horas feminis mais requeresse e não somente para os copiosamente opulentos mas também para aquela que sem ser suficientemente provida de pecúlio mal podia e freqüentemente nem mal podia subsistir bravamente e que por inconsiderável emolumento era atendida.

A ela nada já então e dali por diante podia de qualquer maneira ser molesto pois isso mais sentiam os todos cidadãos exceto com mães proliferentes prosperidade de todo não poder ser e como houvessem recebido a eternidade os deuses os mortais, a geração adequada a eles tocante a ela, quando se o caso assim tinha, parturiente em veículo para ali portando desejo imenso entre todos um ao outro impelia por que naquele domicílio ela ali fosse atendida. Ó coisa de prudente nação não meramente em ser vista mas também e mesmo em ser relatada merecedora de ser alabada que eles a ela por antecipação fossem vendo mãe, que ela por eles repentina estar prestes a ser querida a sentir começasse!

Gaio o menino na madre. Pois era sobejo amado. Pois era sobejo amado. Na madr'era, pequenino. Tôdalas cousas naquela vegada feitas, feitas foram bem feitas. Um carro seguido por parteiras com boas comidas prazeiras, coeiros louçãos bem limpos como se a prenhez já fosse a cabo e se homem avisado tudo guarnecera: mas tão bem com mezinhas avondo, que necessárias eram, e estormentos de cirurgia convinháveis a seu caso dela sem esquecer de rem dos brincos que trazem solaz, ofertos nos diferentes lugares de nosso globo terreal com imagens, humanas e divinais, que só de nelas pensar as mulheres apartadas são mais asinha emprenhadas, ou que fazem mais quedas as cousas no fermoso e alto e claro lar das madres quando, sabidamente adiantada e já pronta, chega lhe a hora de parir, findo dela o seu termo.

Um homem que viandante era esteve então à porta ao poer do sol. Da gente de Israel era o homem que sôbela terra errando longes terras viajara. Por pura mercê era ali. E vinha só até à casa. E vinha só até à casa, sem ter companha por vir i.

Daquela casa A. Horne é senhor. Setenta leitos ele i mantém por que as madres na sua hora delas i venham parir e dar à luz crias sãs assim o anjo de Deus a Maria disse. Cuidosas cuidavam i duas, seguiam espertas. Seguiam espertas na ala irmãs brancas. Maladias pensavam, dando gasalhado aos enfermos: em doze luas três vezes um cento. Ambas excelentes guardiãs dos leitos eram, para Horne guardando a ala cuja dele era.

Na ala queda a guardiã atenta vir oiu aquele mansomem e com cachaço salmilhado lhe abriu inteiro seu portão dela. Mira! O corisco corusca no céu! Corusca no céu como um risco! Na Hibérnia no Oeste. Temeu ela muito que Deus o estruidor toda a gente acabasse com água pelos pecados dele negros. O cruzeiro do Cristo fez ela no peito e por ele puxou, que asinha viesse dentro. O homem, sabendo sua vontade, dino penetrou a casa de Horne. Dino penetrou a casa de Horne.

Aficado em não causar nojo, no salão de Horne chapéu na mão foi o visitador. Com a esposa querida vivera em casa dela. Vivera em casa dela com a filha velida. Ele que então por nove longos anos sôbela terra vagara e polos mares. Um dia ela sendo na angra da cidade ele não lhe havia prestada a reverência. Perdão pedia agora e a ela acrescia de seu talante que aquele rosto por ele a penas divisado, cujo o seu era dela, tão viçoso lhe então parecera. Uma luz veloz lhe os olhos inflama. Rubores, coradas coroas de flores, ganhou sua voz.

Ai Deus, temeu a dor do amigo, pois trazia o luto consigo: mas depois foi contenta. Pois trazia o luto consigo, temeu o pesar imigo: mas depois foi contenta. A ela demandou se O'Hare o doutor enviara mandado do porto distante e ela com acuitado suspiro respondeu que O'Hare o doutor no paraíso era. Desditoso foi o homem de esso ouvir que lhe era pesaroso e sentia o peito piadoso. Tôdalas cousas lhe ela ali contava, pranteando a morte de tão jovem conhecido, sempre anojada sem a justeza de Deus querer ver desdita. Ela disse que ele boa morte mansa houvera pela bondade de Nosso Senhor com clérigo que lhe dera gasalhado, a santa hóstia e o unto dos enfermados em seus membros. O homem pois direito perguntou a irmã sôbela morte que morrera o morto e a irmã respondeu e disse que ele morreu em na ilha Mona por uma ferida braba no ventre três anos haveria já acabados viera o Natal e ela rezou a Deus misericordioso que houvesse a sua alma dele na imortalidade divinal. Ele as palavras dela tristes ouviu, premendo o chapéu mirando triste. E assim estiveram ambos ali desconsolados, lamentando o um com o outro.

Portanto, ó vós que ouvis, pensai no postumeiro fim que é vossa morte e no pó que agarra a todo o homem que de mulher é nato pois como do ventre de sua mãe dele veio ele em pêlo, assim desnudo há de ser guiado ao cabo por que saia como veio.

O homem que à casa viera falou então à enfermeira e perguntou-a uma pergunta. Que desejava saber como calhasse estar a mulher que no leito de parto jazia i. A enfermeira respondeu e disse que, eramá, a mulher estava lidando havia já três dias inteiros e que um duro parto seria e fero de se aturar mas que ora seria mui muito prestes. Ela disse pois que havia vistos muitos partos de mulheres mas nunca nenhum tão duro como o parto daquela mulher, bofé. Então ela todo expôs a ele que sabia que outrora vizinho à casa aquela já vivera. Lhe o homem prestava atenção pois sentia aficadamente e à maravilha a dor das mulheres nas coitas que têm para parir e olhava espantado seu rosto dela como jovem fosse e bela para qualquer homem ver mas porém, eramá, fora ela deixada depois de longos anos para criada. Nove vezes doze mênstruos remocando-a não parida.

****

Alerta! Cala a tua estulpidez. Pflaap! Pflaap! Estóra Rojão! Lá vai ela. Brigada! Nave de ataque. Rumo à rua Mount. Altolá. Pflaap! Tudo em ordem no front. Cê num vem? Corram, praga, fujam. Pflaap!

Lynch! Oi? Mantenha contato visual. Por aqui vai pra alameda Denzille. Baldeia aqui pra mancebia. Nós dois, ela disse, vamo procurar nos michê onde que tá a dita da Maria. Ótimo, quando quiser. Laetabuntur in cubilibus suis. Você também vem? Escuta, quem diabos é o porrinha do sujeito de fatiota preta? Calma! Pecou contra luz e mesmo agora está próximo o dia em que julgará o mundo com fogo. Pflaap! Ut implerentur scripturae. Dá uma palinha de uma balada. Então replicou Dick residente a seu camarada Davy residente. Cristículos, quem é esse bosta desse pregador de merda no salão Merrion? Elias está chegando! Lavado no sangue do cordeiro. Venham, criaturas vinhosas, ginzentas, bebinhas! Venham, seus quases, seus excessos de bagagem e alarmes falsos carasdecão, pescoçosdetouro, testasdebesouro, queixadasdeporco, cérebrosdeamendoim, olhosdefuinha! Venham, triplo extrato de infâmia! Alexander J. Christ Dowie, eis o meu nome, que arremessou à glória quase metade desse planeta da praia de Frisco a Vladivostok. A deidade não é nenhum espetaculozinho lascivo de praça. Eu lhes declaro que ele é seguro e uma proposta de negócios de primeiríssima qualidade. Ele é a coisa mais grandiosa que já aconteceu e não se esqueçam disso. Gritem salvação pelo rei Jesus. Você vi ter que acordar com as galinhas, seu pecador, se quiser embromar o Deus TodoPoderoso. Pflaaaap! Nem perto. Ele tem um xarope para tosse com uma dose extra para você, meu amigo, no bolso de trás. Só experimente para ver.


***

Dando nome aos bois executados por James Joyce, o de muitos ardis.

Mas por que ele fez uma coisa dessas?

A estória é conhecida. Dentro da progressivamente enovelada segunda metade do Ulysses, em que a linguagem é personagem principal, em que a narrativa tem de ser escavada de sob a superfície em que se deleita o arranjador, em que a literatura se diverte sobre a trama, há um episódio que se constitui como uma sucessão de pastiches de estilos literários ingleses, ordenados cronologicamente, que simularia (a sucessão... simularia) o desenvolvimento fetal. Trata-se do episódio que corresponderia à matança dos touros do Sol pelos marujos de Ulisses, na Odisséia. E, como de costume, a coisa é um pouco mais complexa.

No episódio 14 da odisséia de Bloom há, como sempre houve, muitas camadas de leitura, muitos mecanismos em operação. Para além do paralelo homérico, há toda uma mimetização do desenvolvimento do embrião (da fecundação ao parto) que passa pela, mas não se resume à, procissão de pastiches: palavras e símbolos inseridos estrategicamente (um esterno aqui, um unicórnio acolá) dão conta das diversas fases por que passa o ser humano intra-útero. Simultâneo a isso, corre todo o sistema de imbricadas inter-referências que costura todo o Ulysses: recorrências, invocações, citações que nos permitem manter o episódio dentro do quadro de referências que já conseguimos montar e, simultaneamente, ampliar esse mesmo quadro, buscando explicações, desenvolvimentos ou hipóteses. (Aqui vemos Stephen Dedalus se rebaixar a ponto de roubar uma piada de seu nêmesis Mulligan, somos relembrados do gosto do senhor Bloom por vísceras de animais, ficamos conhecendo definitivamente a identidade do possível amante de Milly Bloom em Mullingar e podemos imaginar, finalmente, quem poderia ser Martha, a concubina epistolar de Bloom, que de certa forma conhecemos desde o episódio 5, entre, muitas, outras, coisas...)

Tudo isso, no entanto, se encontra obscurecido, seja na crítica posterior seja no próprio tecido do romance, pelo virtuosismo empregado pelo autor (e exigido do leitor) na elaboração de sua longa enfiada de pastiches e paródias. O próprio Joyce reconhece, em uma carta, que o Gado do Sol (nome por que ficou conhecido o episódio) é o trecho de seu livro que mais exige de quem o tenta compreender, bem como o que mais exigiu de quem o intentou conceber.

As duas dificuldades se colocam, simultaneamente, para quem deseja arriscar seu pescoço traduzindo o episódio. É preciso compreendê-lo, e é preciso reproduzi-lo. Tradutores são o melhor exemplo do leitor-criador.

No Ulysses, mais do que em quase todas as outras obras de ficção (e menos que em outras; basta ir até o Finnegans Wake), o tradutor precisa reavaliar suas estratégias, repensar seus meios. Talvez não se trate ainda, como veremos no Wake, da necessidade da elaboração de toda uma nova poética da tradução. Possivelmente o caso no Ulysses é de uma radicalização de meios e de reflexões que, em seu estado mais amortizado, servem muito bem à tradução de outros romances. Talvez, inclusive, essa seja uma diferença generalizável a outros aspectos do processo de descontrução do romance como nós o conhecemos (conhecíamos?), perpetrado pelas duas grandes obras de Joyce: um leva ao extremo (ao cabo, ao fim) as possibilidades conhecidas, espremendo delas efeitos até então insonhados pela maioria dos que as empregavam; o outro abre possíveis caminhos novos, talvez singulares demais para gerar uma prole.

O leitor do Ulysses precisa aprender o livro enquanto aprende com o livro. Joyce, na delicada transição de estilos, por exemplo, que nos leva desde uma versão refinada de Um retrato do artista até o jorro imediado da assintaxe de Molly Bloom, parece contar com esse fato, contar sempre com o que se já expôs, sobre o que se pode construir, sempre mais alto. O tradutor do Ulysses precisa aprender com ele a repensar seus procedimentos. A ler em mais profundidade. A fazer mais perguntas.

Por que dimunhos ele fez uma coisa dessas?

Pensar, por exemplo, que a ausência de pontuação no monólogo final serve para reproduzir um texto falado, uma sintaxe oral, conquanto equivocado (equivocado?), pode ter sido a explicação para o fato de as duas traduções portuguesas integrais do romance (a de Antônio Houaiss e a lusitana de João Palma-Ferreira: ainda estamos esperando a terceira, da professora Bernardina Silveira Pinheiro, que deveria sair no mês de Março) terem optado por manter no texto impresso a acentuação gráfica das palavras portuguesas. Se Joyce pensou em oralidade, representou-a mal. Se Joyce pensou, iconicamente, em representar uma nudez e um acesso imediato à linguagem e ao leitor, os diacríticos precisam ser eliminados. Mas essa é somente uma ilustração do que somente é a minha opinião, que rege a minha tradução. E todo este texto não se pretende mais que isto.

Por que cargas d’água, no Gado do Sol, Joyce optou por obscurecer quase totalmente a compreensão da trama, por deixar que a linguagem levasse a melhor sobre a comunicação?

É esta a pergunta que, respondida de maneira a deixar cada tradutor satisfeito (não peço mais que isso; não quero que me peçam: a tradução, como a concebo neste caso, é um trabalho artístico-artesanal), deve orientar os procedimentos adotados para tentar reproduzir o experimento joyceano em qualquer língua. De minha parte, foi o que tentei manter em mente ao longo da tradução de cada um dos dezoito episódios.

Eliot, unindo a fôrma e o que contém, acreditava que a sucessão de estilos do Gado do Sol demonstrava a esterilidade do estilo. Sua pletora redundava em vacuidade. Tal opinião estende à superfície do texto o paralelo homérico, com a simbologia do crime contra a fertilidade que foi a morte dos touros de Hélios, fazendo com que este tema ressoe na forma, muito ao gosto de Joyce. Maravilha.

Além disso, via de regra a magnificência da sintaxe e do vocabulário retirados de autores tão díspares quanto Mallory e Dickens, pateticamente distanciados da nula seriedade das conversas que se travam na maternidade, representaria mais um exemplo daquilo que o mesmo Eliot batizou de “método mítico”, criado pelo Ulysses, por possibilitar que a tradição simultaneamente engrandeça e enriqueça o nulo contemporâneo e seja questionada e ridicularizada por ele, com óbvia prevalência desta segunda possibilidade neste caso.

(Richard Ellmann lembra que o coitus interruptus torna-se também tema formal no último trecho do episódio, em que a história da língua se dissolve em jaculações isoladas e infrutíferas.)

Infrutíferas. Esterilidade. Coitus interruptus.

Se o ato sexual é uma (suma?) forma de comunicação, a negação da síntese gerada por ele (a esterilização do coito, como Joyce apontava em carta a Frank Budgen) é uma declaração pirrônica de incomunicabilidade comum. A dificuldade que o leitor encontra em saber o-que-o-Livro-quer-dizer durante todas as páginas do Gado do Sol, encaixa-se assim com facilidade, proporcionando uma única metáfora dominante para todas as esferas que giram concentricamente na noite dublinense.

Homero, Bloom, Fetos, Prosa.

Trata-se, tudo, da negação da fertilidade, da teleologia, da comunicação. Bloom entra só na maternidade. Encontra lá muitos outros, mas permanece só. Stephen sai sozinho. É seguido por outros muitos, mas só permanece.

Se trabalho com esta (rudimentarmente exposta) possibilidade de leitura para a técnica empregada por Joyce para a elaboração do episódio, cumpro a contento (a satisfação que requeiro é sempre apenas a minha) a primeira etapa do processo. Ler o texto. (Que engloba ainda, é bem verdade, a árdua tentativa de se compreender completamente, o mais que se possa, a trama subjacente. E aqui vale prestar-se pequeno tributo a gente como Don Gifford, que, com seu monumental Ulysses annotated revolucionou as possibilidades de acesso dos leitores ao livro e, simetricamente, a gente como Antônio Houaiss, que realizou seu trabalho, prenhe de problemas ou não, antes da existência massiva deste tipo de biblioteca crítica.)

Resta agora pensar em como reescrever o Gado do Sol em português.

Se Joyce quis esterilizar a tradição literária inglesa e mostrar que todo esse processo, no entanto, culminava com o Ulysses (e não custa lembrar que Ellmann, em resposta a Eliot, lembrava que a celebração lingüística de Joyce servia também para reafirmar o “estilo”, ainda que segundo suas regras.), fica claro que toda tradução que se limite a buscar reproduzir as palavras e os períodos do Gado do Sol em sua própria língua é automaticamente uma não-tradução. Precisa e unicamente na medida em que, servil, não se apropria do problema. Não se apropria do problema.

A tradução de um pastiche não é mais que um pastiche de segunda-mão, que pode servir, talvez, apenas como escada de acesso a um eventual leitor que tenha dificuldade de sondar diretamente o original. Mas que irremediavelmente se resolve apenas nele, e com ele. Um Ulisses minimamente autônomo precisa dar conta de se recolocar os problemas encarados pelo original e de respondê-los de forma suficientemente autêntica e pessoal. Traduzir um pastiche equivale a converter, palavra por palavra, um trocadilho.

Estou muito no sol, diria um Hamlet pobre e aleijado.

É preciso (re)produzir. E isso no interesse do leitor brasileiro e do texto original.

Se é fato que Joyce, no Ulysses, nos obriga a aprofundar todos os questionamentos clássicos da teoria do romance, das teorias da leitura e da tradução, o eterno paradoxo da conspicuidade da interferência não poderia deixar de se fazer sentir mais agudo do que em outras obras: quanto menos o tradutor interfira na tradução das linhas do Gado do Sol, mais traduzido parecerá seu texto (e não esqueçamos de que, para complicar ainda mais, Joyce serviu-se também do que chamava de tradutorês); quanto mais se aproprie do Gado, mais vernáculo ele terá de soar: mais intacto.

Gostaria de dizer que vejo apenas duas possibilidades de se responder ao Gado. Mas há uma terceira: escrever em um português salmilhado de palavras antigas, correspondentes a cada um dos períodos abordados pelo Livro, um texto que siga o fluir do original. Maquiar de diacronia uma atradução.

As duas outras?

Uma seria mais direta, mas talvez menos efetiva, e certamente menos possível. É conhecida (ainda que sempre discutível) a lista dos autores que Joyce teria saqueado. Busquem-se as traduções para o português de cada um desses autores, se possível dos mesmos fragmentos que Joyce consultou (ele parece ter-se servido especialmente de duas antologias: Saintsbury, 1912; Peacock, 1903) e espelhem-se os hábitos sintáticos, os cacoetes que Joyce imitou, de seus tradutores.

Além do fato de tal solução ser obviamente (espero que seja claro o obviamente) uma solução de meio-termo, de via média, quem resolvesse guiar-se por ela encontraria de pronto o singelo problema pragmático de que não dispomos das traduções desses autores todos, que dirá daqueles fragmentos. Além disso, como ficou acima, o próprio Joyce se serviu dos maneirismos de tradutores (como o mesmo Saintsbury) que estrangeirizavam o inglês (anglossaxonificavam, para sermos mais precisos) para reproduzir ritmos e sensações da prosa mais antiga.

Dessa forma, em pouco tempo estaremos traduzindo a tradução da tradução. Sob forma de pastiche!

Mais grave: perde-se assim qualquer possibilidade de referência para qualquer leitor imaginável. E que sentido subversivo, questionador, pode ter o pastiche do desconhecido? Que finalidade interessante pode cumprir a sátira do modelo ausente, criado?

O que pensei restar como única alternativa de honestidade para com o Ulysses e para com os possíveis leitores (minha tradução deve permanecer indefinidamente inédita, mas Bakhtin está aí para nos lembrar que o leitor está sempre lá..) era a escolha de um conjunto de templates, retirados da história da literatura de língua portuguesa, que correspondesse em alguma medida ao período histórico, à natureza (texto epistolar, narrativa de viagem, crônica, prosa de ficção), e à representatividade dos autores de cada um dos fragmentos que geraram os pastiches Joyceanos. Que se não correspondesse ponto a ponto, que ao menos compensasse no todo. Tradução.

Há perdas? Sempre haverá. São da natureza mesma do processo. Toda a metáfora da fecundação presente nas primeiras páginas, em que um texto unicamente composto de vocábulos anglo-saxões e um outro de vocabulário predominante e sintaxe puramente latina (um bom exemplo do tradutorês) como que se fundem para gerar a língua inglesa, fica por enquanto sem solução, por exemplo. Mas o estabelecimento de uma lista de fontes, que parte dos trovadores galaico-portugueses (em alguma medida também tradutores dos troubadours provençais), passa pela narrativa da Batalha do Salado, pela Demanda do Santo Graal, por Bernardim Ribeiro, Gil Vicente, Vieira, Mariana Alcoforado, &c, &c, &c, chegando ao Machado de Assis do Memorial de Aires, pode, espero, minimamente reproduzir no texto que gerei os questionamentos éticos e estéticos do texto-fonte e os efeitos sobre os eventuais leitores que Joyce teria podido obter.

Onde ele se apega ao cynghanedd, à prosa aliterativa anglo-saxã, posso buscar os efeitos das cantigas paralelísticas dos primeiros trovadores, inclusive das rimas e da métrica. Onde ele se apóia em Dickens, posso correr a Machado, encontrando simultaneamente um apoio e um espelho, gerando um gado do sol que não é apenas a reprodução passiva de Oxen of the sun, mas sim uma possível versão coetânea em língua portuguesa. O Gado do Sol assim gerado representaria em alguma medida uma colocação frente à literatura brasileira que responde minimamente ao projeto original joyceano. Visto assim, pelas lentes que acredito ter exposto, ele minimamente faz sentido.

Em outros momentos da tradução as perguntas foram outras. E pude mesmo ser estrangeirizador. Mas, aqui, pelo que acredito ter exposto acima, acreditei ser essa a melhor solução.

Fiz o que pude, na tentativa de responder a Joyce.

Com uma, imensa, ressalva. Ninguém (muito menos eu) terá em sua língua o poder de expressão que tinha o homem que, certa vez, teria dito se reconhecer capaz de fazer qualquer coisa com a língua inglesa. E que deu suficientes provas disso.

Ninguém será James Joyce. E por mais ativas que sejam as versões...

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