terça-feira, 21 de agosto de 2007

4. Calipso & 5. Lotófagos

Mastigava destemperadamente, o senhor Bloom, os órgãos internos de aves e animais. Gostava de sopa grossa de miúdos, moelas acastanhadas, um coração assado e recheado, fatias de fígado fritas com farinha de rosca, ovas de bacalhoa fritas. Acima de tudo gostava de rins de carneiro grelhados que lhe davam ao palato um fino laivo de urina vagamente perfumada.
Rins andavam por sua cabeça enquanto se movia tranqüilamente pela cozinha, acertando as coisas do café da manhã dela na bandeja calombuda.
Outra fatia de pão com manteiga: três, quatro: certo. Ela não gostava do prato cheio. Certo. Desviou-se da bandeja, ergueu a chaleira do gancho e pousou-a de lado no fogo. Restou lá, fosca e atarracada, o bico espetado para o alto. Xícara de chá logo, logo. Bom. Boca seca. (11-14)

Ele observava os bigodes brilhando aramemente na luz fraca no que ela acenava três vezes e lambia leve. Fico imaginando se é verdade que se a gente corta depois eles não pegam mais ratos. Por quê? Brilham no escuro, quem sabe, as pontinhas. Ou meio como antenas no escuro, quem sabe. (39-42)

– Eu vou até a esquina. Volto num instante.

E quando já tinha ouvido sua voz dizer isso ele acrescentou:

– Você não quer nada para o café?

Um muxoxo macio sonolento respondeu:

– Mn.

Não. Ela não queria mais nada. (53-58)

Sua mão tirou seu chapéu do cabide sobre seu sobretudo pesado monogramado e seu impermeável de segunda mão do escritório de achados e perdidos. Selos: figurinhas de versos grudentos. Eu diria que montes de funcionários também estão nisso. Claro que sim. A inscrição suarenta na copa de seu chapéu lhe disse mudamente: Plasto’s, alto nível em chap. Espiou rapidamente dentro da carneira de couro. Tirinha branca de papel. Bem segura. (66-71)

Eu sigo. Céu dourado evanescente. Uma mãe me observa da porta de sua casa. Chama as crianças para dentro em sua língua escura. Muro alto: além, cordas tangidas. Céu da noite, lua, violeta, cor das ligas novas da Molly. Cordas. Ouça. Uma menina tocando um daqueles instrumentos comèquechama... saltério. Eu passo.
Provavelmente nada parecido com isso, mesmo. O tipo de coisa que se lê: na trilha do sol.
(94-99)

Uma nuvem pôs-se a cobrir o céu inteiro, lenta, inteira. Cinza. Longe.

Não, não é assim. Uma terra estéril, esteio vão. Lago vulcânico, o mar morto: sem peixes, desalgado, fundo afundado na terra. Vento algum ergueria aquelas ondas, metal cinza, águas turvas venenosas. Enxofre invocaram chovendo: as cidades da planície: Sodoma, Gomorra, Edom. Todos nomes mortos. Um mar morto em uma terra morta, cinza e velha. Velha agora. Gerou a mais antiga, a primeira raça. Uma bruxa curva atravessou vinda do Cassidy agarrando uma garrafinha pelo pescoço. O mais velho povo. Vagaram longe por toda a terra, cativeiro em cativeiro, multiplicando, morrendo, nascendo em toda parte. Restava lá agora. Agora não podia mais gerar. Morta: de uma velha: cinzenta vulva do mundo submersa.

Desolação.

Horrores cinzentos crestavam sua carne. (218-30)

– Poldy!

Entrando no quarto ele semicerrou os olhos e seguiu por um crepúsculo quente amarelo até sua cabeça desfeita.

– Para quem é que são as cartas?

Ele olhou. Mullingar. Milly.

– Uma carta para mim da Milly, ele disse com cuidado, e um cartão para você. E uma carta para você.

Ele largou o cartão e a carta dela na colcha de algodão perto da curva de seus joelhos.

– Quer que levante a persiana?

Erguendo a persiana com puxões suaves a meio caminho seu olho em retaguarda viu que ela espiava a carta e a metia embaixo do travesseiro.

– Bom assim? ele perguntou, virando-se.

Ela lia o cartão, apoiada no cotovelo.

– As coisas chegaram, ela disse.

Ele esperou até que ela tivesse posto o cartão de lado e se enrodilhado de novo lentamente com um suspiro reconfortante.

– Anda logo com aquele chá, ela disse. Eu estou esturricada.

– A água está fervendo, ele disse.

Mas ele se deixou ficar para livrar a cadeira: sua anágua listrada, roupa de baixo suja jogada: e levantou tudo em uma braçada para o pé da cama.

No que ele descia a escada da cozinha ela chamou:

– Poldy!

– Quê?

– Escalde o bule. (246-70)

– Como você demorou, ela disse.

Fez cantar o latão erguendo-se bruscamente, com um cotovelo no travesseiro. Ele olhava calmamente para baixo, para sua forma e entre seus grandes peitos macios, reclinados dentro da camisola como o úbere de uma cabra. O calor de seu corpo acamado subia no ar, entrançando-se à fragrância do chá que derramava.

Uma tira de envelope rasgado apontava debaixo do travesseiro amarfanhado. No ato de sair, ele se deteve para esticar a colcha.

– De quem era a carta? ele perguntou.

Letra segura. Marion.

– Ah, Boylan, ela disse. Ele vem trazer o programa.

– O que é que você vai cantar?

– La ci darem com J. C. Doyle, ela disse, e A doce e velha canção do amor.

Seus lábios cheios, bebendo, sorriram. Cheiro meio rançoso que o incenso deixa no dia seguinte. Como água de flor, apodrecida.

– Quer que abra um pouco a janela?

Ela enfiou uma fatia de pão dobrada na boca, perguntando:

– Que horas é o enterro?

– Às onze, eu acho, ele respondeu. Eu não olhei o jornal.

Seguindo seu dedo que apontava ele apanhou uma perna de suas calcinhas sujas de cima da cama. Não? Então, uma liga cinza retorcida enroscada em uma meia: amarrotada, sola brilhante.

– Não: aquele livro.

Outra meia. A anágua.

– Deve de ter caído, ela disse.

Tateou aqui e ali. Voglio e non vorrei. Fico imaginando se ela pronuncia isso direito: voglio. Na cama não. Deve ter escorregado para baixo. Ele se abaixou e levantou a sanefa. O livro, caído, estatelado contra o bojo do penico laranja imbricado.

– Deixa ver, ela disse. Eu pus uma marca. Tem uma palavra que eu queria te perguntar.

Ela engoliu um gole de chá da xícara que segurava pela nãoasa e, tendo limpado prontamente os dedos no cobertor, começou a procurar no texto com o grampo até chegar à palavra.

– Mete em quê? ele perguntou.

– Aqui, ela disse. O que é que isso quer dizer?

Ele se inclinou para baixo e leu junto a sua unha pintada.

– Metempsicose?

– É. Como é que é nome dela para os íntimos?

– Metempsicose, ele disse, cerrando o cenho. É grego: vem do grego. Quer dizer transmigração de almas.

– Com a breca! ela disse. Fale em língua de gente.

Ele sorria, espiando de esguelha seu olho gozador. Os mesmos olhos jovens. A primeira noite depois das adivinhas. Celeiro Dolphin. Ele virava as páginas encardidas. Ruby: o orgulho do picadeiro. Olá. Ilustração. Italiano feroz com um rebenque. Deve ser Ruby o orgulho do nua no chão. Lençol cedido cortesmente. O monstro Maffei desistiu e arremessou de si sua vítima com uma imprecação. Crueldade por trás de tudo. Animais dopados. O trapézio no Hengler. Tinha de olhar para o outro lado. A turba boquiaberta. Arrebente o pescoço que a gente arrebenta de rir. Famílias inteiras. Desossados desde jovens para que se metempsicosem. Que vivemos depois da morte. Nossas almas. Que a alma de um homem depois de sua morte. A alma de Dignam...

– Você já terminou este? ele perguntou.

– Já, ela disse. Não tem nenhuma senvergonhice. Ela está apaixonada pelo primeiro sujeito desde o começo?

– Nunca li. Quer outro?

– Quero. Pega outro do Paul de Kock. Nome bonito o dele.

Pôs mais chá na xícara, observando seu fluxo inclinada.

Preciso renovar aquele livro da biblioteca da Capel street ou eles vão escrever ao Kearney, o meu fiador. Reencarnação: é essa a palavra.

– Tem gente que acredita, ele disse, que nós continuamos vivendo em outro corpo depois da morte, que nós já vivemos antes. Eles chamam isso de reencarnação. Que nós todos já vivemos na terra há milhares de anos ou algum outro planeta. Eles dizem que nós esquecemos. Alguns dizem que se lembram das suas vidas passadas.

O creme estagnado tecia espirais talhadas por todo seu chá. Melhor lembrá-la da palavra: metempsicose. Um exemplo é que era melhor. Um exemplo?

O Banho da ninfa sobre a cama. Distribuído de brinde com o número de páscoa da Photo Bits: esplêndida obraprima em cores artísticas. Chá antes de você colocar o leite. Não muito diferente dela com o cabelo solto: mais esbelta. Três e seis eu dei pela moldura. Ela disse que ia ficar bonito em cima da cama. Ninfas nuas: Grécia: e por exemplo todas as pessoas que viveram naquela época.

Ele voltou as páginas.

– Metempsicose, ele disse, é como os gregos antigos chamavam. Eles acreditavam que você podia se transformar em um animal ou em uma árvore, por exemplo. O que eles chamavam de ninfas, por exemplo.

Sua colher parou de mexer o açúcar. Encarava em frente, inalando pelas narinas arqueadas.

– Cheiro de queimado, ela disse. Você deixou alguma coisa no fogo?

– O rim! ele gritou de repente.

Passando cabrilhas ao longo do cais de sir John Rogerson seguia sóbrio o senhor Bloom, pela alameda Windmill, Leask o moleiro de linhaça, a agência dos correios e telégrafos. Podia ter dado esse endereço também. E pelo retiro dos marinheiros. Desviou-se dos ruídos matinais do porto e caminhou pela rua Lime. Perto dos casebres de Brady um menino que catava pelancas zanzava, balde atado ao braço, fumando uma guimba mascada. Uma menina menor com cicatrizes de eczema pela testa mantinha os olhos nele, segurando murcha um aro surrado de barril. Dizer a ele que se fumar não vai crescer. Ah, que fume! A vida dele não é lá mesmo um mar de rosas! Esperando do lado de fora dos bares para trazer o paiê para casa. Volta pra casa com a manhê, paiê. Hora morta: não vai ter muita gente lá. Cruzou a rua Townsend, passou pela cara fechada da fachada de Bethel. El, sim: casa de: Álef, Beth. E pela loja de Nichols o agente funerário. É às onze. Tem tempo. Eu diria que o Corny Kelleher garfou este serviço para a firma do O’Neill. Cantando de olhos fechados. Corny. No parque passei por ela. Noite singela. Oh, que bela. Alcagüeta da polícia. Seu nome e endereço então me deu larirá larirá larirei. Ah, claro que garfou. Um enterro barato em um comèquechama. E larirá, larirá, larirá, larirá.

M’Coy. Livrar-me dele rápido. Me tirar do caminho. Você não quer companhia quando.

[...]

Com os olhos na gravata e roupa pretas ele perguntou no tom baixo do respeito:

[...]

Foto não é. Um distintivo quem sabe.

[...]

O senhor Bloom mirava do outro lado da rua o docar encostado à frente da porta do Grosvenor. O porteiro içou a valise até o passadiço. Ela esperava, imóvel, enquanto o homem, marido, irmão, igual a ela, vasculhava os bolsos em busca de troco. Casaquinho chique com aquela gola enrolada, quente para um dia desses, parece feito de cobertor. Postura desinteressada a dela com as mãos naqueles bolsos aplicados externos. Como aquela criatura altiva no jogo de pólo. Mulheres todas castas até você acertar o ponto justo. Quem ama bonito bonito parece. Reservada a ponto de ceder. A honrada senhora e Brutus é um homem honrado. Possuída uma vez perde a goma.

[...]

Doran Lyons no Conway. Ela levou uma mão enluvada ao cabelo. E lá veio o Cervejinha. Tomando umas. Reclinando a cabeça e vendo longe além dos cílios velados ele via a reluzente pele de cervato brilhar no esplendor, as encostas tramadas. Claramente eu vejo hoje. A umidade no ar dá vista longa quem sabe. Falando de uma coisa e de outra. Mão de senhora. De qual lado ela vai subir?

[...]

Indo para o campo: Broadstone provavelmente. Botas altas marrons com laços pendurados. Pé bentorneado. Mas por que é que ele está se enrolando com aquele troco? Viu que eu estou olhando. De olho em outros tipos sempre. Boa provisão. Dois pássaros na mão.

[...]

Orgulhosa: rica: meias de seda.

[...]

Desviou-se um pouco da cabeça falante de M’Coy. Vai subir daqui a pouco.

[...]

Olha lá! Olha lá! Luz de seda meias ricas brancura. Olha!

Um pesante bonde grasnando a campainha meteu-se entre.

Perdi. Maldito carachata barulhento. Parece que me isolaram. Morrer na praia. Acontece sempre assim. Bem na hora. A garota no corredor na rua Eustace segundafeira acho que foi ajustando a liga. A amiga cobrindo a exibição da. Esprit de corps. Então, está olhando o quê aí de boca aberta?

[...]

O bonde passou. Eles partiram para a ponte da linha Loop, sua rica mão enluvada no apoio de aço. Tremeluz, tremeluz: a esplendorfita do chapéu ao sol: luz, tremeluz.

[...]

Ele desenrolou o bastão de jornal com ar vago e leu com ar vago:

O que é o lar sem

O patê de carne Plumtree?

Incompleto.

Com ele, um recanto de júbilo.

[...]

O esquema da maleta de novo. Falando nisso sem querer incomodar. Estou fora dessa, obrigado.

O senhor Bloom virava seus olhos grandespálpebros com desapressada cordialidade.

[...]

Senhora Marion Bloom. Ainda não levantou. A rainha estava no quarto comendo pão com. Livro algum. Figuras encardidas do baralho dispostas ao longo de suas pernas em grupos de sete. Mulher escura e homem louro. Carta. Gata bola preta peluda. Tira rasgada de envelope.

A velha

E doce

Canção

Do amor

E vem a velha e doce...

[...]

M’Coy fez que sim, cutucando a raiz do bigode.

[...]

Fez que ia sair.

[...]

Não me pegou cochilando essa arapuca. Mão leve. Ponto fraco. Até parece. Maleta por que eu tenho um xodó. Couro. Cantos reforçados, bordas rebitadas, fechadura com lingüeta de ação dupla. O Bob Cowley emprestou a dele para o concerto da regata Wicklow no ano passado e nunca mais teve notícias dela desde aquele belo dia até hoje.

O senhor Bloom, caminhando para a rua Brunswick, sorriu. A patroa acabou de. Soprano sardenta fanhosa. Narizinho mirrado. Satisfatória lá à sua maneira: para uma baladinha. Sem colhões. Você e eu, sabe como? No mesmo barco. Vaselina. De dar nos nervos. Será que ele não consegue ouvir a diferença? Acho que ele é meio desviado. Me arrepia um pouco. Achei que Belfast ia acabar com ele. Espero que aquela varicela lá em cima não piore. Imagino que ela não ia querer tomar a vacina de novo. A sua esposa e a minha esposa.

Fico imaginando se ele está me cafetinando.

O senhor Bloom parou na esquina, os olhos vagando por sobre as placas multicoloridas. Ginger ale de Cantrell e Cochrane (Aromática). Liquidação de verão da Clery. Não, está passando direto. (82-194)

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