terça-feira, 28 de agosto de 2007

Hades

Martin Cunningham, primeiro, enfiou a cabeça encartolada na carruagem rangente e, entrando ágil, sentou seu corpo. O senhor Power subiu depois dele, curvando cuidadoso a estatura.

– Entre, Simon.

– Por favor, o senhor Bloom disse.

O senhor Dedalus cobriu-se rapidamente e entrou, dizendo:

– Sim, sim.

– Estamos todos aqui agora? Martin Cunningham perguntou. Venha junto, Bloom.

O senhor Bloom entrou e sentou no lugar vago. Ele puxou a porta atrás de si e bateu-a duas vezes até que ficou bem fechada. Passou um braço pela braçadeira e olhou sério pela janela aberta da carruagem as persianas abaixadas da avenida. Uma puxada para o lado: uma velha espiando. Nariz achatado branco contra o vidro. Agradecendo a sua estrela ter perdido a vez. Extraordinário o interesse que elas têm por um cadáver. Felizes ao nos ver ir nós incomodamos tanto vindo. O trabalho parece feito para elas. À sorrelfa pelos cantos. Chapinhando em chinelas chicoteantes de medo que ele acorde. E então prepará-lo. Aviá-lo. Molly e a senhora Flemming arrumando a cama. Puxe mais para o seu lado. Nosso sudário. Nunca se sabe quem vai tocar você morto. Banho e xampu. Eu acho que elas aparam as unhas e o cabelo. Guardam um pouco em um envelope. Cresce mesmo assim depois. Trabalho impuro. (1-19)

Martin Cunningham cutucou o senhor Power.

– Da tribo de Rúben, ele disse.

Um vulto alto barbapreto, dobrado em uma bengala, bordejando pela esquina da casa Elefante de Elvery lhes mostrava uma mão curva aberta em sua espinha.

– Em toda sua prístina beleza, o senhor Power disse.

O senhor Dedalus procurou enxergar a figura bordejante e disse suavemente:

– Que o diabo lhe quebre os engonços das costas!

O senhor Power, desatando a rir na janela, cobriu seu rosto enquanto a carruagem passava a estátua de Gray.

– Todos já sentimos na carne, Martin Cunnigham disse vago.

Seus olhos encontraram os do senhor Bloom. Ele afagou sua barba, acrescentando:

– Bem, quase todos. (250-61)

O senhor Bloom começou a falar com súbita ansiedade para os rostos de seus companheiros.

– É excelente aquela que andam contando sobre Reuben J. e o filho.

– Aquela do barqueiro? o senhor Power perguntou.

– É. Não é excelente?

– Mas que estória é essa? o senhor Dedalus perguntou. Eu não ouvi.

– Havia lá uma garota em questão, o senhor Bloom começou, e ele resolveu mandá-lo para a ilha de Man para longe do perigo mas quando os dois estavam...

– O quê? o senhor Dedalus perguntou. Aquele completo badameco?

– Sim, o senhor Bloom disse. Estavam os dois a caminho do barco e ele tentou se afogar...

– Afoguem Barrabás! o senhor Dedalus gritou. Por Deus eu queria que ele tivesse feito de uma vez!

O senhor Power soltou uma risada comprida por suas narinas cobertas.

– Não, o senhor Bloom disse, o filho...

Martin Cunnigham cortou sua fala rudemente.

– Reuben J. e o filho estavam picando suas mulinhas pelo cais perto do rio a caminho do barco da ilha de Man e o patifezinho de repente se soltou e lá se vai ele por cima do muro para dentro do Liffey.

– Pelo amor de Deus! o senhor Dedalus exclamou assustado. Ele morreu?

– Morreu! Martin Cunnigham gritou. Não aquele lá! Um barqueiro pegou uma vara e pescou-o pelos fundilhos das calças e ele foi içado até o pai no cais mais morto do que vivo. Meia cidade estava lá.

– Sim, o senhor Bloom disse. Mas a parte engraçada é que...

– E Reuben J., Martin Cunningham disse, deu ao barqueiro um florim por salvar a vida do seu filho.

Um suspiro abafado surgiu de sob a mão do senhor Power.

– Ah, mas deu, Martin Cunningham afirmou. Como um herói. Um florim de prata.

– Não é excelente? o senhor Bloom disse ansiosamente. (262-90)

Padre Coffey. Coffin. Eu sabia que o nome dele era como um caixão. Dominenamine. Tem uma fuça de valentão ele. Comanda o espetáculo. Cristão musculoso. Deus tenha piedade do coitadinho que olhar torto para ele: padre. Tu és Pedro. Estourar pelas bordas como uma ovelha prenha diz o Dedalus que ele vai. Com um barrigão daqueles que parece um cachorrinho esturricado. Aquele sujeito acha cada expressão mais engraçada. Hhhhn: estourar pelas bordas.

Non intres in judicium cum servo tuo, Domine.

Faz com que se sintam mais importantes rezar para eles em latim. Missa de réquiem. Carpideiras de crepe. Papel de recados bordapreto. O seu nome na lista do altar. Lugarzinho gelado esse. Tinha mesmo de comer bem, sentado lá a manhã inteira na obscuridade balançando os pés esperando pelo próximo por favor. Olhos de sapo também. O que será que o deixa inchado assim? A Molly fica inchada com repolho. O ar do lugar quem sabe. Parece estar entupido de gases mefíticos. Deve haver uma quantidade infernal de gases mefíticos por aqui. Os açougueiros por exemplo: eles ficam parecidos com bife cru. Quem é que estava me contando? Mervyn Browne. Lá embaixo nas catacumbas do lindo órgão antigo de são Werburgh cento e cinqüenta eles tem de fazer um buraco nos caixões de vez em quando para deixar o gás mefítico sair e queimá-lo. E ele jorra: azul. Uma fungada naquilo e você já era.

A minha rótula está doendo. Au. Melhor assim.

O padre tirou um pauzinho com uma bola na ponta de dentro do balde do menino e o sacudiu sobre o caixão. Então andou até a outra ponta e sacudiu de novo. Voltou então e o colocou de volta no balde. Como eras antes de descansares. Está tudo escrito: ele tem de fazer.

Et ne nos inducas in tentationem.

O coroinha flautava as respostas em tenor. Eu sempre achei que seria melhor ter meninos como criados. Até quinze anos mais ou menos. Depois disso é claro...

Água benta aquilo, eu acho. Sacudindo sono com aquilo. Ele deve estar cheio desse trabalho, sacudir aquela coisa em todos os cadáveres que eles trazem a trote para cá. Qual seria o problema se ele pudesse ver sobre o que ele está sacudindo. A cada dia de meu Deus uma fornada fresquinha: homens de meiaidade, velhas, crianças, mulheres mortas no parto, homens de barba, negociantes carecas, menininhas tísicas com peitinhos de pardocas. O ano inteiro ele rezava a mesma coisa sobre todos eles e sacudia água em cima deles: dorme. Agora o Dignam.

In paradisum.

Disse que ele foi para o paraíso ou que está no paraíso. Diz isso em cima de todo mundo. Trabalhinho cansativo. Mas ele tem de dizer alguma coisa. (595-630)

Hynes rabiscando alguma coisa no seu caderninho. Ah, os nomes. Mas ele conhece todos eles. Não: vindo para mim.

– Eu estou apenas pegando os nomes, Hynes disse em um sopro de seu hálito. Qual é o seu nome de batismo? Eu não tenho certeza.

– L, o senhor Bloom disse. Leopold. E você pode incluir o nome do M’Coy também. Ele me pediu.

– Charley, Hynes disse escrevendo. Eu sei. Ele já esteve no Freeman.

Esteve mesmo antes de conseguir o trabalho no necrotério com Louis Byrne. Boa idéia um postmortem para médicos. Descobrir o que eles acham que sabem. Morreu de uma terçafeira. Se mandou. Evaporou com o dinheiro de uns anúncios. Charley, menino malvado. Foi por isso que ele me pediu. Enfim, mal não faz. Eu tomei conta daquilo, M’Coy. Obrigado, meu velho: fico devendo. Deixá-lo obrigado: não custa nada.

– Mas me conte, Hynes disse, você conhece aquele sujeito com o, o sujeito que estava ali com o...

Ele olhava em volta.

– Mackintosh. Sim, eu vi, o senhor Bloom disse. Cadê ele agora?

– M’Intosh, Hynes disse, escrevinhando, eu não sei quem ele é. É esse o nome dele?

Ele se afastava, olhando em torno.

– Não, o senhor Bloom começou, virando e se detendo. Escuta, Hynes! (878-98)

O senhor Bloom checou as unhas de sua mão esquerda, depois as da direita. As unhas, sim. Será que ele tem algo a mais que elas ela vê? Fascínio. O pior homem de Dublin. Isso o mantém vivo. Elas às vezes sentem o que uma pessoa é. Instinto. Mas um tipo desses. Minhas unhas. Eu estou apenas olhando para elas: bem aparadas. E depois: pensando sozinho. O corpo ficando um pouco mole. Eu haveria de perceber: pela lembrança. O que é que provoca isso? Eu acho que a pele não consegue se contrair tão rápido assim quando a carne despenca. Mas a forma está lá. A forma está lá ainda. Ombros. Quadris. Roliça. Noite do baile se vestindo. A combinação atrás presa na bunda.

Juntou as mãos entre os joelhos e, satisfeito, enviou seu olhar vago sobre seus rostos. (200-10)

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