terça-feira, 30 de outubro de 2007

Circe

(A entrada da rua Mabbot para Nighttown, diante da qual se estende um findelinha dos bondes sem pavimentação, com trilhosesqueletos, fogosfátuos vermelhos e verdes e sinais de perigo. Fileiras de casas maltrapilhas com portas escancaradas. Raras lâmpadas com cúpulas arcoíris desbotadas. Junto à imobilizada gôndola de sorvetes de Rabaiotti, homens e mulheres gorados batem boca. Agarram-se a biscoitos ázimos entre os quais se espremem pedras de carvão e neve cobre. Sugando, dispersam-se, lentos. Crianças. A cisnecrista da gôndola, altempinada, finge-se cruzando a lama, branca, azul, sob um farol. Assovios chamam, respondem.

O CHAMADO

Espera, amor, que estarei contigo.

AS RESPOSTAS

Ali atrás do estábulo.

(Um idiota surdo mudo com olhos saltados, a boca disforme babando, passa convulso, agitado na dança de São Vito. Uma corrente de mãos de crianças o aprisiona.)

AS CRIANÇAS

Sinistro! Saúde.

O IDIOTA

(ergue uma mão paralisada e arrulha) Ghahud!

AS CRIANÇAS

Cadê a grande luz?

O IDIOTA

(Boquejando) Ghaghahest.

(Elas o libertam. Ele segue convulso. Uma pigméia balança de uma corda presa entre as vigas, contando. Uma forma escarrapachada contra um cesto de lixo e obnubilada por seu braço e seu chapéu se move, resmunga, rilha urros nos dentes, e ronca de novo. Em um degrau um gnomo bebezando entre uma pilhadejetos se agacha para pôr ao ombro uma saca de trapos e ossos. Uma velho de pé por perto com uma fumarenta lanterna a óleo atocha a última garrafa na bocarra de sua saca. Guinda seu butim, puxa, envieza seu gorro de ponta e sai cambaleante, mudamente. O velha se dirige de volta a seu covil balançando sua lâmpada. Uma criança cambaia, acocorada no limiar com uma peteca de papel, rasteja deslizante atrás dela em repelões, agarra sua saia, arrasta-se para cima. Um operário bêbado agarra com as duas mãos as grades de um pátio, espreitando, pesado. Em uma esquina duas rondas noturnas com capas sobre os ombros, mãos nos coldres dos cassetetes, formas altas vigilantes. Um prato se estilhaça: uma mulher grita: uma criança berra. Pragas de um homem rugem, murmuram, cessam. Figuras erram, emboscadas, observam dos cortiços. Em um quarto à luz de uma vela enfiada em um gargalo uma vadia penteia e desfia os nós do cabelo de uma criança escrofulosa. A voz de Cissy Caffrey, ainda jovem, canta aguda da alameda.)

CISSY CAFFREY

Eu dei para a Molly

Ao som desse fole,

A pata do pato

A pata do pato.


***

UM VELHO RESIDENTE

O senhor é um crédito para seu país, senhor, essa é que é a verdade.

UMA VENDEDORA DE MAÇÃS

É o tipo de homem que a Irlanda quer.

BLOOM

Meus amados súditos, uma nova era está prestes a nascer. Eu, Bloom, em verdade vos digo que ela está já surgindo. Sim, pela palavra de um Bloom, em pouco adentrareis a cidade que será, a nova Bloomusalém novae Hiberniae do futuro.

(Trintedois operários, usando rosetas, de todos os condados da Irlanda, guiados por Derwan, o construtor, erigem a nova Bloomusalém. Trata-se de um colossal edifício com teto de cristal, construído no formato de imenso rim de porco, contendo quarenta mil cômodos. No curso de sua ampliação diversos edifícios e monumentos são demolidos. Escritórios do governo são temporariamente transferidos para abrigos ferroviários. Numerosas casas são arrasadas. Os habitantes são acolhidos em tonéis e caixas, todas marcadas em vermelho com as letras: L. B. Diversos pedintes caem de uma escada. Uma parte das muralhas de Dublin, atulhadas de leais curiosos, desmorona.)

OS CURIOSOS

(morrendo) Morituri te salutant. (morrem)

(Um homem vestindo uma capa mackintosh marrom surge de um alçapão. Ele aponta um dedo alongado para Bloom.)

O HOMEM COM A MACKINTOSH

Não acreditem em uma só palavra do que ele diz. Este homem é Leopold M'Intosh, o notório incendiário. Seu verdadeiro nome é Higgins.

BLOOM

Dêem-lhe um tiro! Cachorro de cristão! Chega de M'Intosh!

(Um tiro de canhão. O homem com a mackintosh desaparece. Bloom com seu cetro nocauteia papoulas. Reportam-se as mortes instantâneas de muitos poderosos inimigos, pecuaristas, membros do parlamento, membros de comitês permanentes. Os guardacostas de Bloom distribuem óbulos, medalhas comemorativas, pães e peixes, distintivos de temperança, caros charutos Henry Clay, ossos de vaca gratuitos para a sopa, preservativos de borracha em envelopes selados atados com fio de ouro, caramelos de caramelo, balas de abacaxi, billets doux na forma de chapéus de aba virada, ternos prontos, vasilhas de vaca atolada, garrafas do fluido de Jeyes, valescompras, indulgências de 40 dias, moedas espúrias, salsichas de porcos alimentados com leite, passes para o teatro, bilhetes sazonais disponíveis para todas as linhas do bonde, cupons da loteria com privilégio real da Hungria, valesrefeições, reimpressões baratas dos Doze Piores Livros do Mundo: Froggy e Fritz (político), Cuidado do bebê (infantílico) 50 refeições por 7,6 (culínico), Teria Jesus sido um mito solar (histórico), Expulse essa dor (médico), Compêndio infantil do universo (cósmico), Gargalhemos todos (hilárico), Vademécum do corretor publicitário (jornalístico), Cartas de amor da madre assistente (erótico), Quem é quem no espaço (ástrico), Canções que tocaram nossos corações (melódico), De tostão em tostão até a riqueza (parcimônico). Correria e agitação generalizadas. As mulheres se acotovelam para tocar a bainha da toga de Bloom. Lady Gwendolen Dubedat irrompe através da turba, salta em seu cavalo e beija-o em ambas as bochechas entre grande aclamação. Tira-se uma fotografia com lâmpada de magnésio. Bebês e lactentes são levantados.)

AS MULHERES

Paizinho! Paizinho!

***

STEPHEN

(voz embargada de pavor, remorso e horror) Eles dizem que eu te matei, mãe. Ele ofendeu a tua memória. Foi o câncer, não eu. Destino.

A MÃE

(uma verde linha de bile escorrendo do canto de sua boca) Você cantou aquela música para mim. O amargo mistério do amor.

STEPHEN

(ansiosamente) Me diga a palavra, mãe, se você sabe agora. A palavra que todos os homens conhecem.

A MÃE

Quem te salvou na noite em que você saltou no trem em Dalkey com o Paddy Lee? Quem teve pena de você quando você estava triste entre os estranhos? A oração é todopoderosa. Oração pelas almas que sofrem no manual das Ursulinas e indulgência de quarenta dias. Se arrependa, Stephen.

STEPHEN

O monstro! Hiena!

A MÃE

Eu rezo por você no meu outro mundo. Peça pra Dilly fazer pra você aquele arroz cozido toda noite depois do teu estudo. Por anos e anos eu te amei, ah, meu filho, meu primogênito, quando você estava dentro da minha barriga.

ZOE

(abanando-se com o leque das brasas) Ai que me derreto!

FLORRY

(aponta para Stephen) Olha! Ele está branco.

BLOOM

(vai até a janela para abri-la mais) Tonto.

A MÃE

(com olhos ardentes) Arrepende-te! Ah, o fogo do inferno!

STEPHEN

(ofegando) Seu sublimado incorrosivo! O mascadáver! Cabeça crua e ossos sangrentos.

A MÃE

(seu rosto chegando mais e mais próximo, recendendo a um alento de cinzas) Cuidado! (ela ergue seu braço direito seco enegrecido lentamente até o peito de Stephen com um dedo esticado) Cuidado com a mão de Deus!

(Um caranguejo verde com olhos malignos vermelhos enfia fundo suas garras sorridentes no coração de Stephen.)

STEPHEN

(estrangulado pela raiva, seus traços feitos cinzentos e velhos) Bosta!

BLOOM

(à janela) O quê?

STEPHEN

Ah non, par exemple! A imaginação intelectual! Comigo tudo ou não de todo. Non serviam!

FLORRY

Dêem um pouco de água fria para ele. Espera. (ela sai correndo)

A MÃE

(torce lentamente as mãos, gemendo desesperadamente) Ai, sagrado coração de Jesus, tem piedade dele! Salvai-o do inferno, ó divino sagrado coração!

STEPHEN

Não! Não! Não! Quebrem meu espírito, vocês todos, se puderem! Eu vou botar vocês todos a meus pés!

A MÃE

(na agonia de seu chocalho de morte) Tem piedade do Stephen, Senhor, em meu nome! Inexprimível foi minha angústia quando expirando de amor, dor e agonia no Monte Calvário.

STEPHEN

Nothung!

(Ele ergue seu freixo alto com as duas mãos e destrói o candelabro. A lívida última flama do tempo salta e, na escuridão que se segue, ruína de todo o espaço, vidro estilhaçado e alvenaria desmoronando.)

O BICO DE GÁS

Pwfungg!

BLOOM

Pare!

LYNCH

(corre e segura a mão de Stephen) Calma! Se acalme! Não alucine!

BELLA

Polícia!

**

BLOOM

(assopra) Providencial você ter surgido em cena. Você está com um carro...?

CORNY KELLEHER

(ri, aponta o polegar sobre o ombro direito para o carro encostado contra os andaimes) Dois mascates que andavam comprando borbulhas no Jammet´s. Pareciam príncipes, juro. Um deles perdeu duas pratas na corrida. Afogando as mágoas. E estavam dispostos a uma visita às menininhas. Então eu meti os dois no carro do Behan e toca pra nighttown.

BLOOM

Eu estava só indo para casa passando pela rua Gardiner quando por acaso eu ...

CORNY KELLEHER

(ri) Claro que eles queriam que eu me juntasse às raparigas. Não, pelo amor de Deus, digo eu. Não para uns velhuscos como eu e você. (ele ri novamente e olha, lascivo, com olhos deslustres) Graças a Deus nós temos em casa, não é? Hein? Está me entendendo? Rá, rá rá!

BLOOM

(tenta rir) Rê, rê, rê! É. A bem da verdade eu estava só visitando um velho amigo meu ali, Virag, você não conhece (pobre coitado, está esticado há uma semana) e nós tomamos uma bebida juntos e eu estava só no meu caminho para casa......

(o cavalo relincha)

O CAVALO

Cacacacacacá! Cacacacasa!

CORNY KELLEHER

Claro que foi o nosso cocheiro Behan que me avisou depois que deixamos os dois mascates na senhora Cohen e eu disse para ele encostar e desci para ver. (ele ri) Motoristas sóbrios de rabecão são uma raridade. Eu dou uma carona para ele até em casa? Onde é que ele se esconde? Algum lugar em Cabra, não é?

BLOOM

Não, em Sandycove, eu acho, pelo que ele deixou escapar.

(Stephen, de costas, respira para os astros. Corny Kelleher, oblíquo, puxa o cavalo. Bloom, incomum, prazer nenhum.)

CORNY KELLEHER

(coça a nuca) Sandycove! (ele se curva e chama por Stephen) Ei! (chama novamente) Ei! Ele está coberto de serragem de qualquer maneira. Cuide para eles não roubarem nada dele.

BLOOM

Não, não, não. Eu estou com o dinheiro dele e o chapéu aqui e a bengala.

CORNY KELLEHER

Ah, muito bem, ele vai se recuperar. Nenhum osso quebrado. Bom, eu vou indo. (ri) Eu tenho um encontro marcado de manhã. Enterrar os mortos. Sãos e salvos para casa!

O CAVALO

(relincha) Cacacacacasa.

BLOOM

Boa noite. Eu vou só esperar e levá-lo daqui em alguns...

(Corny Kelleher volta para o carro e monta nele. Os arreios do cavalo estralejam.)

CORNY KELLEHER

(de dentro do carro, de pé) Noite.

BLOOM

Noite.

(O cocheiro estala as rédeas e ergue o chicote encorajadoramente. O carro e o cavalo andam lentos para trás, desajeitadamente, e viram. Corny Kelleher no assento lateral oscila a cabeça para a frente e para trás em sinal de alegria para com a missão de Bloom. O cocheiro se junta à muda diversão pantomímica acenando com a cabeça do assento mais distante. Bloom sacode a cabeça em muda resposta divertida. Com o polegar e a palma da mão Corny Kelleher reassegura que os dois guardinhas vão deixar o sono em paz por quanto seja necessário. Com um lento aceno de cabeça Bloom expressa sua gratidão sendo isso exatamente o que Stephen precisa ter. O carro estraleja larirá pela esquina da lariralameda. Corny Kelleher novamente reassegurarirá com a mão. Bloom com sua mãos assegurarirá a Corny Kelleher que está reassegurirarirado. Os cascos estalantes e estralejantes arreios vão sumindo com seu larirá lari lailai. Bloom, segurando o chapéu de Stephen, embandeirado de serragem, e o freixo, resta irresoluto. Então ele se curva até ele e o sacode pelo ombro.)

BLOOM

Ei! Oi! (Não há resposta. Ele se curva mais uma vez.) Senhor Dedalus! (não há resposta) O nome se você disser. Sonâmbulo. (ele se curva mais uma vez e, hesitante, leva sua boca mais próxima da forma prostrada) Stephen! (Não há resposta. Ele chama de novo.) Stephen!

STEPHEN

(contorce o rosto) Quem? Pantera negra. Vampiro. (ele suspira e se estica, depois murmura enrolado com prolongadas vogais)

Quem... conduzir... Fergus agora

E furar... a sombra entretecida da madeira...?

(Vira-se para o lado esquerdo, suspirando, dobrando-se sobre si próprio.)

BLOOM

Poesia. Bem educado. Pena. (ele se curva novamente e solta os botões do colete de Stephen) Para respirar. (ele espana a serragem das roupas de Stephen com mão leve, e dedos) Uma libra e sete. Pelo menos não está machucado. (escuta) O quê?

STEPHEN

(murmura)

... sombras ... o bosque

... alvo seio ... mar escuro.

(Ele estende os braços, suspira novamente e enrosca o corpo. Bloom, segurando o chapéu e o freixo, continua ereto. Um cão ladra à distância. Bloom segura mais forte e mais fraco o freixo. Ele olha para o rosto e a forma de Stephen, para baixo.)

BLOOM

(comunga com a noite) O rosto me lembra o da coitada da mãe dele. No bosque sombrio. O fundo e alvo seio. Ferguson, eu acho que peguei. Uma moça. Alguma moça. Melhor coisa que podia acontecer com ele. (ele murmura)..... Juro que sempre saudarei, sempre ocultarei, nunca revelarei, qualquer parte ou partes, arte ou artes...... (murmura)..... nas rudes areias do mar. Longe da praia uma toa.... onde reflui a maré... e flui.....

(Silente, pensativo, alerta monta guarda, dedos nos lábios na atitude do mestre secreto. Contra a parede escura uma figura surge lentamente, um meninofada de onze anos, um bebê trocado, raptado, vestindo um terno de Eton com sapatos de vidro e um pequeno elmo de bronze, segurando um livro. Ele lê da direita para a esquerda, inaudivelmente, sorrindo, beijando a página.)

BLOOM

(maravilhado, chama inaudivelmente) Rudy!

RUDY

(mira, senvermente, os olhos de Bloom e segue lendo, beijando, sorrindo. Tem um delicado rosto bordô. Em seu terno há botões de diamante e de rubi. Em sua mão esquerda livre ele segura uma fina cana de marfim com um laço violeta. Um cordeirinho branco espia do bolso de seu colete.)


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